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A adaptação da Serena

Cães adotados de uma certa idade são uma caixa de surpresas sobre como irão se comportar durante o período de adaptação, que pode levar meses e até anos. Quando peguei a Serena no colo pela primeira vez para levar para casa, a Jéssica, uma querida que atende na clínica voluntária, percebendo meu olhar espantado com a Serena costurada do peito à virilha, olhou pra mim e sorriu: “Meu gato eu adotei há quatro anos e ele ainda não vem no meu colo, de jeito nenhum. Não te preocupa, é assim mesmo.”

Recordo com tristeza do relato da organizadora de um dos abrigos para cães salvos nas enchentes do Rio Grande do Sul. Ela me contou que as pessoas estavam devolvendo os cães no dia seguinte à adoção, argumentando que “Não se adaptou”. É um fato tanto lamentável, a pessoa devolver um cachorro como se trocasse um item numa loja, quanto libertador, por saber que o cão teve essa espécie de livramento.

A adoção de animais é coisa séria e os questionários de adoção responsável tem mais que ser extensos, mesmo, para fazer a triagem das pessoas que consideram cães como brinquedos.

Certa vez, almoçando em um restaurante junto às mesas na calçada, o Rogerinho aguardava deitadinho ao lado da mesa. Quando me dei conta, tinha uma bebê se aproximando dele, agarrada na grade do cercado do restaurante, mal parava em pé. Puxei o Rogerinho para que saísse de perto dela. A mãe me pediu desculpas, mas expliquei que a criança querer fazer carinho nele não era o problema. Eu estava era receosa com a reação dele sobre a bebê. Ao que a mulher responde: “Ah, nem te preocupa, temos uma cachorrinha em casa e ela (a filha) faz dela gato e sapato”. Senti tanta pena do pobre animalzinho que perdi a fome.

Isso me faz lembrar do meu primo, há muitos anos, quando criança, adorava apertar o lombo do cachorrinho da mãe dele. Chegava perto do bichinho e ia com as mãos pra cima dele, apertando o cachorro. O cão sempre dava um jeito de se desvencilhar. Só que um dia ele cansou de ser machucado e revidou. Tomou impulso, se equilibrou com as patas traseiras, levantou uma das dianteiras e provocou um arranhão no rosto do meu primo. Só que fez mais que arranhar, abriu o lábio dele de cima a baixo. Levou pontos.

Cachorro não é brinquedo.

A Serena chegou bastante traumatizada. Foi salva da enchente e, ainda por cima, os voluntários do abrigo acreditavam que sofria maus tratos. Para fazermos carinho era preciso nos posicionarmos no campo de visão dela e estender o braço aos poucos. Ela, com uma postura cabisbaixa e desconfiada, “suportava” a aproximação. Caso contrário, se pega desprevenida, gritava aos quatro ventos. Aqui no Rio Grande do Sul temos uma expressão chamada “carneando porco”. Quem já ouviu esse som perturbador visualizará como a Serena reagia a tudo que lhe assustava.

No primeiro temporal ela passou toda a noite e madrugada debaixo da nossa cama, alinhada com nossos travesseiros. Sentíamos a cama tremer em função da tremedeira dela. O coração disparado e arfava o tempo todo de calor por causa da agitação. Não dormi por algumas noites – porque quando começa a chover aqui não para mais –, tentando acalmá-la.

Ela tinha a mania de colar na gente quando caminhávamos no pátio, talvez com medo do abandono, e dava pra sentir o nosso calcanhar bater embaixo da boca, e ela começava a gritar como se estivesse sendo esfaqueada.

Nas primeiras vezes que saímos de carro, ela e o Rogerinho vinham até o portão e eu ralhava com os dois para irem em direção à área da casa, evitando que saíssem pra rua. O Rogerinho, acostumado, obedecia. Ela acionava o berreiro, não gostava. Noutra vez mandei os cães saírem de casa para passar pano no chão da sala, ela não gostou e fugiu. Hoje a grade do pátio está toda fechada com tela de pinteiro. Foi um gasto necessário pra minha guria não me deixar mais desfalecida. Só quem já correu pelas ruas da cidade chorando, visualizando todo tipo de situação ruim com o animalzinho de grande estima, vendo as pessoas não darem a mínima, é que sabe do que estou falando.

A mente do cachorro funciona em canais. Tem o canal da comida, o da disputa, o da atenção do dono etc. Eles entram em um desses canais e pode esquecer, ficam focados, concentram as atenções no momento presente e é difícil tirar um cão não treinado do canal em que entrou. Pois todos os dias, pela manhã, a Serena entrava no canal da deprê. Se posicionava num canto da sala, piso frio, no inverno, mesmo com a caminha dela maravilhosa, fofa, quentinha, cheia de cobertinhas. Baixava a cabeça a ponto de não enxergarmos os olhos e ali ficava. Não atendia aos chamados, carinhos não a compravam, podíamos mostrar um osso cheio de carne diante do focinho. Nada nem ninguém a livrava do canal da depressão.

A nossa interpretação é que ela deve ter passado por tantos lugares e situações ruins, que levaria um tempo até entender que aquele era um lar. O lar dela. Parecia que ela entrava naquela deprê esperando pelo próximo acontecimento: “Tá, qual vai ser agora? Vão me mandar pra um outro abrigo? Vão me mandar de volta pra quem me maltratava? Vão me mandar de volta pra clínica pra me cortarem?”. E pior que ela vai ter que voltar para a clínica para retirar as mamas do outro lado em função dos tumores.

Ela parecia não comprar muito aquela vida maravilhosa que a gente sonhou em oferecer ao segundo cãozinho que adotaríamos um dia.

E este é o grande barato do processo de adoção de cães, perceber as mudanças no comportamento do animal conforme ele vai criando o sentimento de pertencimento, vai captando o jeito de cada morador, ao mesmo tempo em que vai mostrando quem é e criando novos hábitos também, conforme a rotina da casa. Isso é tão maravilhoso. O convívio com cães não tem preço. Vou falar disso em outro post, pois é um animal com o qual temos muito o que aprender.

Um fator que fez o processo de adaptação dar um salto quântico foi o sítio. Por isso, compartilho com você, que pode estar passando por um período de adaptação com seu cãozinho. As idas ao sítio fomentam uma série de situações que auxiliam na criação e na forte amarração de laços com a tua bola de pêlos.

Levar a Serena em um lugar quase ermo fez da gente os heróis dela, pois éramos as únicas criaturas por lá e que ela já conhecia. O cão percebe o quanto depende de você e o quanto se sente seguro ao teu lado. Mas não solte o cão. Levei a Serena na guia e dei um passeio com ela pelos pontos mais frequentados. Sempre segurando a guia, para mostrar que não é pra sair, assim, à la louca, enfrentando vacas, assustando galinhas e outros bichos. Ordem!

Também teve várias situações em que precisei pegar a Serena no colo, tanto para posicionar no carro quanto para descer do veículo, além de colocar e retirar a guia, uma série de manipulações do cão que eu estava receosa em fazer por causa da reatividade dela. Até então, as pessoas só se aproximaram e pegaram ela para dar remédio, fazer cirurgia, injeção, prender num canil de 1 m x 1 m, sabe-se lá se o passado envolve maus tratos, além de toda a situação da enchente. E essas manipulações, tanto em casa quanto no sítio, sempre acontecendo com o meu rosto afastado da bocarra do animal. Lembre-se de que seu dog é um bicho. Uma boca sobre quatro patas. E bicho é bicho sempre.

Depois de estar acostumada com o ambiente do sítio, com os animais e com as áreas onde circulamos, soltamos da guia e ela simplesmente virou uma sombra nossa. Não arredava o pé. Nem os golpes da enxada, nem os barulhos das atividades que realizamos no sítio faziam ela sair de perto. E aos poucos vimos ela estendendo o raio de passeio, chegando a ficar ausente por um bom tempo algumas vezes. Daí prendo o grito, como dizemos aqui, dou um berro agudo específico que tenho para chamar os cães ao ar livre, podendo quebrar taças no sítio mais próximo e atacar cavalos do coração.

O sítio tem muitos atrativos para o cão exercer todas as suas habilidades e testar os seus formidáveis sentidos. E isso vai gerando confiança no próprio cão na medida em que explora o espaço e se sente livre, condição avessa à anterior em que vivia preso no abrigo.

O estabelecimento de uma rotina é imprescindível para o cachorro ter uma vida saudável, pois ele funciona na base de padrões. Ele estabelece padrões de comportamento e está sempre pronto para executá-los. A Serena já sabe quando vamos ao sítio no momento em que começamos a nos vestir. Ela já espera pela guia e vai bem comportada sobre a caminhonete ou no meu colo. Já tem a rotina de chegada no sítio, fazendo a ronda nos lugares de costume. Fazer xixi no máximo de moitas que encontrar pela frente, beber água no lago, procurar pela gramínea preferida para obter a porção de fibras do dia, sentar frente ao lago e gastar o tempo a observar o coaxar dos sapos, intrigada sobre como seria a fisionomia desses seres. Esconder ossos, farejar tudo que for possível, lamber as patas por longos períodos, explorar um pouco mais longe a cada vez. Deitar na posição “tainha aberta na brasa” sobre o piso frio da área em dias quentes e deitar sobre a pedra ao final de um dia frio, enquanto a rocha ainda está quente.

Mas apenas leve o teu cão para um parque ou um lugar no campo quando ele já estiver adaptado a tua casa. Na adaptação de um cão tudo é aos poucos e no ritmo dele. Se ainda demonstrar medo, aguarde quando ele estiver mais seguro. Levou tempo para a Serena começar a frequentar o sítio. Esperamos ela ficar bem à vontade em casa e com mais confiança na gente. Lembrando que a prática é diferente com filhotes. É bom pesquisar sobre o exercício do siga-me, entre outras técnicas de educação de um cão filhote.

Este post está comprido mas quem se interessa por cães, por entendê-los e tratá-los com o devido respeito, lê. Quem se interessa lê tudo sobre cães, desde literatura especializada até relatos como o meu e tantos outros de pessoas preocupadas em tratar cães como cães, deixando eles serem o que são, com respeito, carinho e os devidos cuidados.

A posição “tainha aberta na brasa” ajuda a refrescar, trocando calor com as placas cerâmicas.

No dia em que chegou, 29 de junho. O Rogerinho reagiu com curiosidade e o Jaiminho, o cão dos meus pais, veio dar as boas-vindas. Ela já desceu do carro procurando um lugar para fazer xixi, uma vitória. Há cães que ficam de 2 a 3 dias sem fazer as necessidades. Foi o caso do Jaiminho. Na foto da direita, um registro da Serena no canal da deprê em uma manhã. Se posicionava debaixo da mesa me aguardando chegar para trabalhar. Ali ficava um tempão até eu esquecer dela, espichar as pernas e bater sem querer na coitadinha. Hoje ela acorda saudando o Sol, feliz da vida, querendo carinho e pronta para as aventuras do dia. Mas nunca julguei essa deprê matinal dela. Quem nunca?

Considere chamar o cão pelo nome que ele já escuta há bastante tempo, o que ele recebeu no abrigo. Pois é, tem cães que vivem em abrigos por anos, quase décadas. Então, considere continuar vocalizando o som a que ele está acostumado, para garantir que tenha algo de familiar durante essa grande e importante mudança.

Por fim, compartilho o que ouvi de uma proprietária de abrigo para animais de todo tipo – porquinha sem uma pata, resgatada de um abatedouro, jumenta, cabrito, cães etc. Ela disse que “O processo de adaptação é tijolinho por tijolinho. Num dia damos um passo para frente, noutro damos um passo para trás”. Essa do passo para trás foi a melhor coisa que ouvi na história toda da adoção – que iniciou bem antes das enchentes. Ouvir de uma pessoa especializada e sensata que damos, sim, passos para trás, fez toda a diferença para o meu processo de adaptação. Porque tem dias, sim, que parece que estamos indo para trás.

Acontece que no nosso entendimento a situação já se resolveu. Porque você escolheu adotar e está se esforçando. E está tão apegado ao cão já, desde o dia em que ele era apenas uma foto mal tirada em um perfil de rede social, que esquece que faz apenas 1 semana que ele está com você. E detalhe: ele não escolheu mudar. Ele não escolheu ir para o desconhecido. Por mais que você seja um ser humano bem gente boa, o cão pode levar um tempo para perceber isso. Para reconhecer que a sua casa será o próprio lar pelo resto da vidinha dele. Que tudo que você está fazendo é para o bem dele.

Com o tempo, aquele passinho para trás vai ficando completamente deslocado da trajetória confiante e bonita que vocês constroem juntos. O passinho para trás fica parecendo aquela fotografia que vem dentro do livro que a gente compra no sebo. Um resquício de um passado que não se encaixa em lugar nenhum. Um bug de sistema que some quando reiniciamos a máquina.

É aos poucos, é um passo de cada vez, sem pressa e sem pausa. E não tem nada que se compare à alegria de poder proporcionar uma vida digna e saudável a esses seres indefesos que tanto fazem pela gente sem nem se cansarem, sem nem perceberem.

Fotos e texto de minha autoria, Juciéli Botton, para a Casa Baunilha.

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